Na madrugada de 13 de julho de 2023, o professor Édson Raymundo Pinheiro de Souza Franco nos deixou. Tão de repente, ficamos órfãos dele, sem que estivéssemos preparados. Como nos ensina Lia Luft, “nós precisamos de tempo para integrar a morte na vida”. No entanto, os mortos vivem — e este é o caso de Édson — enquanto nós nos lembrarmos de suas ações, de seu rosto, de sua voz, de seus gestos, de sua risada franca, de seu otimismo, do brilho de seus olhos, de seu amor pela educação, de suas crenças e seus valores, de seu gosto pelo risco e dos belos e difíceis momentos compartilhados com ele.
Eu tive o privilégio de conviver de perto com Édson por quase três décadas de minha vida profissional. E mais do que isso, desfrutei de sua amizade fraterna, de sua generosidade e confiança e de seus ensinamentos e experimentei a certeza de que nas relações de trabalho o respeito e admiração mútuos são essenciais para o êxito de toda e qualquer proposta institucional.
Pela sua mão, adentrei ao universo do ensino superior privado, no início da década de 1990, na condição de assessora da Associação Brasileira de Mantenedores de Ensino Superior (ABMES), na gestão de Candido Mendes. O que eu não sabia, naquela época, é que iria testemunhar um trabalho genuíno liderado por este incrível e visionário protagonista da história da ABMES e, consequentemente, do ensino superior privado brasileiro. Vivi com Édson uma gratificante experiência profissional.
Sendo assim, escolhi fazer no espaço deste depoimento um recorte no tempo — de 1992 a 2004, período em que Édson foi presidente da ABMES — para prestar uma singela e comovida homenagem a essa grandiosa figura humana, o meu mentor e o meu “guru”.
Com sua generosidade, ele afirmava que a “A ABMES já havia nascido grande e que esse mérito se devia aos companheiros Candido Mendes, Vera Gissoni, Electro Bonini e Gabriel Mário Rodrigues. “Provinciano como sou, lá das plagas perdidas da Amazônia, meu primeiro problema foi me fazer conhecido pelos grandes líderes educacionais e políticos. Pior de tudo, foi suceder a Candido Mendes, educador e intelectual respeitado, dotado de beleza física, imponência, de família nobre, carioca da gema”.
No entanto, a história demonstrou que Édson o sucedeu com louvor, ao demostrar competência técnica, habilidade política e vocação para o diálogo não só com as instituições de ensino superior privado e públicas, como também com os órgãos governamentais. Tornou-se extremamente respeitado por seus pares, circulava com uma invejável desenvoltura nos ambientes oficiais, onde era igualmente admirado, e participou de inúmeras comissões e audiências públicas. Em nenhum momento foi omisso no estreitamento das relações com os Três Poderes.
Durante a gestão de Édson, a ABMES viveu um forte período de expansão. O número de associados aumentou exponencialmente, graças às possibilidades oferecidas aos associados, visando ao desenvolvimento de programas e projetos das mantenedoras e mantidas. Uma mudança importante ocorreu: a ABMES abandonou de vez a ideia inicial de ser uma instância avaliadora das entidades associadas e se propôs a subsidiá-las no seu processo de auto-avaliação, como fonte de referência para a elaboração de um projeto institucional consistente, inovador e condutor das atividades de ensino, pesquisa e extensão.
Para promover tal mudança, o que fez a Abmes, sob a gestão de Édson Franco?
De forma breve, devo dizer que, a Associação se propôs a ser espaço de debates e de produção de conhecimento sobre o ensino privado, ao ocupar competente e estrategicamente o vácuo deixado pelo Ministério da Educação, em 1992, no governo de Fernando Collor de Mello. Esse movimento começou pela realização de seminários mensais, iniciativa que ganhou em pouco tempo grande aceitação por parte das IES, tendo em vista a adequação dos temas tratados ao sistema privado de ensino superior. Sempre realizados na semana dos encontros do Conselho Nacional de Educação (CNE), passaram a fazer parte do calendário de eventos da área educacional em Brasília.
Resultaram desses seminários conhecimentos novos sobre a elaboração de projeto político institucional, modelos de gestão, de avaliação e de coordenação de cursos, sempre com a expertise de expoentes da área educacional provenientes de todas as regiões do país. Os seminários permitiram grande troca de experiências entre as IES e as fortaleceram no enfrentamento de inúmeras dificuldades comuns entre as quais “a caminhada do processo galopante de regulação, mais exigente que a própria regulação, uma tortura para o ensino de livre iniciativa”, como Édson enfatizava. Sempre atento às mudanças pelas quais passavam as instituições, ele tomou a iniciativa de fazer uma primeira consulta à Receita Federal sobre a possibilidade de transformação das instituições “sem fins lucrativos” para “instituições com fins lucrativos” e de elaborar um conjunto de normas para orientar as IES que desejavam esta transformação.
A ABMES deixou para trás as pequenas salas do Edifício Rádio Center e se instalou em confortáveis ambientes no Pátio Brasil que incluíam um belo auditório. Nesse novo espaço, ocorreram eventos memoráveis, como foi o caso dos “ciclos de debates” com os representantes dos candidatos à Presidência da República na corrida eleitoral de 2003. Ao lado disso, a Associação deu continuidade às discussões sobre programas de financiamento e de bolsas aos estudantes da iniciativa privada. O Programa Universidade para Todos (ProUni), por exemplo, “nasceu”, numa das salas da ABMES, cuja proposta foi trazida em 2003, por Fernando Haddad, então do Ministério do Planejamento, que viria a ser, depois, ministro da Educação. Competiu ao Édson organizar uma reunião com os dez maiores mantenedores do ensino superior privado, à época, para a apresentação das ideias iniciais do programa. Deu certo. Haddad sempre reconheceu o papel exercido por Édson na consolidação do programa.
A ABMES Editora, menina dos olhos de Édson, destinou-se primordialmente à divulgação do conhecimento produzido pela Associação. “A ABMES se tornou conhecida e respeitada pela qualidade e regularidade das suas publicações. Estas, muito requisitadas pelas instituições, atraíram a atenção do próprio MEC que se tornou um cliente assíduo”. Édson tinha enorme orgulho de vê-las nos gabinetes oficiais.
Édson se manteve fiel à ideia de integração das mantenedoras de ensino superior privado, sob a liderança da ABMES. Considerando que as mantidas se constituíam em universidades, centros universitários e pequenas e médias IES, ele criou câmaras para discutir os problemas desses grupos e, depois, a presidência e as duas vice-presidências da Associação passaram ser representadas com base em tal classificação. Édson continuou a sua luta para integrar as mantenedoras e mantidas, ação que deu origem ao “Fórum das Entidades Representativas do Ensino Superior”, no qual que está a sua assinatura, ao lado da marca deixada por Gabriel Mario Rodrigues que consolidou esta iniciativa.
Em que pesem suas qualidades e competências, Édson era destituído de arrogância e vaidades, capaz de ouvir e de se fazer ouvir. Ao final de sua gestão, reconheceu que, apesar das conquistas e do reconhecimento de seu trabalho, havia muita coisa ainda a ser feita tais como: apoio efetivo às pequenas e médias IES; criação de programas de aperfeiçoamento do corpo técnico e docente; fortalecimento dos debates sobre as “megainstituições”; elaboração de orientações sobre o sistema econômico e financeiro das escolas associadas. Édson estava triste com os descaminhos do Programa de Financiamento Estudantil (Fies).
Resta-me, para finalizar, tecer alguns comentários sobre Édson em relação aos seus escritos, à sua verve e às suas posições diante do mundo e da vida. Ele foi um gigante imbatível nos discursos e conferências. Encantou plateias com sua impecável oratória e capacidade de comunicação. Era interessante observar como as pessoas se ajeitavam nas suas cadeiras para ouvi-lo, para beber de sua rica fonte. Nunca perdeu um debate. E com a mesma desenvoltura eu o vi, comentar o Círio de Nazaré para a televisão paraense, acomodado em um palanque instalado no alto de uma mangueira, na avenida por onde passava a procissão.
Era o vice-rei do Pará! Lá reinou soberano: foi secretário de Educação; Conselheiro do Conselho Estadual de Educação e Membro da Academia Paraense de Letras e da Academia Paraense de Jornalismo, entre outras funções e cargos A Universidade da Amazônia, da qual foi um dos fundadores e reitor, formou gerações e promoveu por meio da educação importantes transformações na região.
O “nosso presidente” escreveu muito — livros, ensaios e artigos. Inspirando-me em João de Jesus Paes Loureiro, o poeta paraense, seu querido amigo, não há como duvidar que o talento nato de Édson para a escrita foi inspirado pela natureza regional. Escrever para ele foi a condição essencial de sua existência; uma espécie de relação visceral entre a carne e o espírito. O prazer de criar pelas palavras deu a ele a sensação de poder construir um mundo com pedaços de sua alma.
Cito outro João, o Guimaraes Rosa, escritor mineiro, que sabiamente disse: “Cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é concedido. Sua tarefa nunca é maior que sua capacidade para poder cumpri-la. Ela consiste em preencher seu lugar, em servir à verdade e aos homens”. Édson conheceu seu lugar e sua tarefa; fez justiça ao seu lugar e à sua tarefa, como seu credo, seu leitmotiv. Estas foram as leis de sua vida, do seu trabalho, de sua responsabilidade. A elas se sentiu obrigado, por elas se guiou, por elas viveu.
Por elas, Édson Raymundo Pinheiro de Souza Franco viverá para sempre!
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